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Ensaio sobre a cegueira

O que acontece quando deixamos de lado a visão?


Texto de Nina Veiga*

“Escrevo para desassossegar meus leitores”, disse José Saramago, pela última vez, na apresentação do seu romance “Caim”. "Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem". Existe no Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago uma diferença sutil entre as atitudes de olhar e de ver. O olhar no sentido de percepção visual, uma consequência física do sentido humano da visão. O ver como uma possibilidade de observação atenciosa, de exame daquilo que nos aparece à vista. Provavelmente é nesse sentido que o autor traz como epígrafe do livro a frase: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. O reparar, portanto, não é nada mais do que se libertar da superficialidade da visão para aprofundar o interior do que é o homem e, finalmente, conhecê-lo'.

 

...batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentrovira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego. Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angústia. É assim que Saramago começa seu Ensaio sobre a cegueira. Um livro denso, 300 páginas de, como define o próprio autor, “constante aflição”. É assim que Saramago começa seu Ensaio sobre a cegueira. Um livro denso, 300 páginas de, como define o próprio autor, “constante aflição”. Pode-se concluir que é um livro sobre a cegueira anímica, uma metáfora que trata das múltiplas insensibilidades que exercitamos cotidianamente. No entanto não é das insensibilidades do visto que vou falar, antes disso, quero usar a cegueira para dizer das sensibilidades do não ver. O que eu não vejo quando vejo e o que eu vejo quando não vejo? Eis duas questões interessantes. Vivemos em uma sociedade que prioriza o olhar, mas vemos muito pouco. Daquilo que conseguimos ver, pouco fruímos. Olhares apressados, fugazes, conclusões diletantes, precipitadas. Uma passada de olhos no mais das vezes. Neste modo de ser, o que deixamos de ver? Sensibilidades. Deixamos de ver os detalhes, deixamos de ver os olhares. Escapamos ligeiros, escondidos pela superficialidade do olhar. Mas o que acontece quando deixamos de lado a visão? Quando fechamos os olhos? Quando queremos guardar na memória do coração algo especial, fechamos os olhos e nos concentramos em tudo aquilo que sentimos pouco com os olhos abertos: o calor, o cheiro, as nuanças do tato. Quantas vezes por dia fechas os olhos para fazeres algo? Quantas vezes por dia não vês? Quantas vezes por dia, de olhos fechados vê algo que lhe diz diretamente à alma: enxerga-me?

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*Texto para o novo livro de Nina Veiga: Por uma estética da vida viva. Quem apoia o canal com 20 reais por mês, faz parte de um grupo de leitores que podem acompanhar a edição de pertinho, criticando e sugerindo. Faça parte do grupo de apoiadores: 32991131748.Apoie pelo catarse: https://www.catarse.me/ativismo_delicado_arte ou por PIX: pix@ninaveiga.com.br

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